UMA FOGUEIRA DE LUZ
Sabíamos que ela existia, que era perigosa, que matava muita gente por onde passava, mas eram apenas palavras que chegavam até nós trazidas por amigos de outras paragens e refugiados da guerra.
Por volta de 1915 ela adentrou em nosso acampamento, e tudo que diziam era verdade, meu povo quase foi dizimado por ela.
Os mais velhos e as crianças foram suas primeiras vitimas, a tradição teve que ser esquecida e os mortos eram enterrados rapidamente para não contagiar aqueles que ainda não tinham a doença.
Nesta época eu devia ter 15 anos e a vida sorria para mim, logo iria me casar com aquele para o qual eu fora prometida desde o meu nascimento, na verdade os preparativos e a festa já estavam em andamento, nosso país graças a Deus não estava participando da guerra que atingia toda a Europa e ela chegou sem ser convidada.
As mortes começaram a acontecer, em pouco tempo dezenas de irmãos partiram para a eternidade, não sei explicar porque fui poupada, estive ao lado daqueles que contraíram a doença, ajudei como pude, mas meu povo não tinha como escapar desta assassina.
O que um dia foi o acampamento cigano em muito pouco tempo virou um cemitério, poucos de nós escaparam, perdi todos que eu amava, ela levou minha mãe, meu pai, dois dos meus três irmãos, meus tios, meus amigos e aquele que um dia seria o meu marido.
Assim como chegou ela partiu deixando um rastro de morte e desolação, nós os sobreviventes partimos deixando tudo para trás, colocamos fogo no pouco que havia restado do que um dia foi chamado de nosso lar, ao longe dava para avistar a fumaça negra que consumia o nosso acampamento.
Éramos em talvez vinte ou mais pessoas que fugiam apenas com o que pudemos carregar, água mantimentos, a roupa do corpo e algumas moedas.
Pela estrada o que se via eram apenas outras pessoas que como nós haviam conseguido escapar da morte e muitos não iriam terminar a viagem.
levavam com eles os sintomas da praga e com certeza iriam contaminar aqueles que estavam juntos na estrada fugindo do inimigo invisível.
Lívio um dos poucos homens de nosso acampamento que havia sido poupado assumiu a chefia do grupo e disse que deveríamos deixar a estrada e procurar um lugar para montarmos nosso novo acampamento.
Todos concordaram afinal estavam cansados da caminhada, a sede e a fome já faziam parte do nosso grupo e alguma coisa tinha que ser feita.
Nos afastamos da estrada e entramos em meio a um bosque em busca do local, depois de uma boa caminhada encontramos uma clareira e paramos, não dava para descansar, portanto foram distribuídas tarefas para todos.
Meu irmão Niko teve a incumbência de encontrar água, outro cigano ainda jovem de encontrar comida e os outros ficaram para montar as barracas com galhos e folhas que haviam por toda nossa volta.
Naquela noite a sorte parece que se lembrou da gente, meu irmão voltou dizendo que havia encontrado uma fonte, ainda tínhamos mantimentos que iriam durar alguns dias e uma pequena fogueira foi acesa para aquecer os alimentos e a todos nós.
Mal sabíamos que aquela pequena fogueira iria mudar a vida de muita gente, apesar de pequena parecia um farol iluminando a noite e atraindo quem passava na estrada.
E eles foram chegando, pedaços do que outrora foram famílias, algumas crianças sem os pais, homens que haviam perdido a razão de viver, todos eram atraídos por aquela pequena fogueira e nós nos desdobrávamos para atender a todos e tentar dar um pouco de conforto para aquelas pessoas.
Ciganos e gadjes juntos na desgraça, o preconceito foi esquecido, o amor à vida era maior que tudo.
Outros ciganos chegaram com suas carroças e montaram suas tendas, havíamos criado uma comunidade onde todos se respeitavam.
Em pouco tempo àquela clareira ficou pequena, arvores foram derrubadas e com a madeira construíam barracos.
Um dia chegou uma carroça de um comerciante com mantimentos e ele montou seu pequeno negócio, outros comerciantes também se instalaram por ali e a clareira foi aumentando até chegar a estrada.
No principio Lívio comandava e organizava aquela gente, mas com o passar do tempo ninguém dava atenção as suas palavras, o nosso pequeno acampamento estava virando um vilarejo, e crescia todo dia.
Agora a estrada passava no meio do local, já haviam barracos do outro lado da estrada, a mudança era muito rápida, onde antes eram barracos casas eram levantadas do dia para a noite, comerciantes das cidades vizinhas traziam mercadorias para comercializar ali e o povo cigano foi ficando distante, continuávamos no mesmo lugar, o que antes era o centro da clareira hoje era um canto esquecido.
Os ciganos que chegaram permaneceram unidos, assim nosso acampamento continuava apesar de tudo, aquelas crianças que chegaram até nós sem os pais continuavam com a gente, os outros foram se afastando e se integrando o vilarejo.
Só se lembravam do povo cigano quando alguém adoecia, mulheres em trabalho de parto eram levadas para os ciganos e acabei virando parteira, mãe das crianças órfãs, amiga daqueles que perderam tudo.
Nossa pequena fogueira era acesa todas as noites, mas já não fazia o mesmo efeito de outrora, muitas outras eram acesas pelos gadjes e o que se via era muita fumaça cobrindo o céu estrelado.
Meu sonho de um casamento feliz ficou no passado, se meu pai não mais podia me ver casando, se meu noivo estava na eternidade jurei jamais me casar e cumpri esse juramento até o fim dos meus dias.
A guerra finalmente terminou e todos comemoraram, alguns voltaram para seus paises de origem, outros ficaram por aqui, afinal era um porto seguro, a doença jamais chegou até nós mas, continuava matando em todo o mundo.
Aquela comunidade que existia estava acabando, o amor foi se distanciando, a intolerância voltou, ser cigano passou a ser sinal de raça inferior e abandonados na periferia daquele vilarejo íamos levando nossa vida.
Nossa vida foi ficando insustentável, se acontecesse um roubo no vilarejo colocavam a culpa nos ciganos, gadjes bebiam em demasia e vinham perturbar a nossa paz, ciganas eram desrespeitados em plena luz do dia, os comerciantes cobravam mais caro do meu povo, de repente nós éramos os intrusos e tudo faziam para demonstrar isso.
Então certa noite quando estávamos todos a beira da nossa fogueira Lívio disse:
- Aqueles que forem ciganos e também aqueles que hoje se consideram ciganos estão convidados, meu grupo vai partir amanhã, nosso lugar é na estrada e Santa Sara como sempre vai estar com a gente nesta jornada, portanto aqueles que quiserem preparem suas coisas vamos partir, vamos em busca daquilo que todo não cigano inveja, vamos aproveitar a nossa liberdade, acordar com o sol e dormir com as estrelas.
A resposta ao comunicado de Lívio foram gritos, palmas e todos começaram a arrumar suas coisas e no dia seguinte aquela mesma fogueira que ainda mostrava sinais de vida da noite anterior foi definitivamente apagada para renascer em outro lugar em outro acampamento.
A caravana cigana estava outra vez na estrada deixando para trás uma pequena cidade.
Sou Silvana.
A amiga das piores horas.
Sou a parteira na entrada da vida.
Sou a mãe dos esquecidos.
Sou a conselheira.
Sou o abrigo.
Mas antes de tudo sou cigana.
AUTOR: Gidelson E. da Silva
Sabíamos que ela existia, que era perigosa, que matava muita gente por onde passava, mas eram apenas palavras que chegavam até nós trazidas por amigos de outras paragens e refugiados da guerra.
Por volta de 1915 ela adentrou em nosso acampamento, e tudo que diziam era verdade, meu povo quase foi dizimado por ela.
Os mais velhos e as crianças foram suas primeiras vitimas, a tradição teve que ser esquecida e os mortos eram enterrados rapidamente para não contagiar aqueles que ainda não tinham a doença.
Nesta época eu devia ter 15 anos e a vida sorria para mim, logo iria me casar com aquele para o qual eu fora prometida desde o meu nascimento, na verdade os preparativos e a festa já estavam em andamento, nosso país graças a Deus não estava participando da guerra que atingia toda a Europa e ela chegou sem ser convidada.
As mortes começaram a acontecer, em pouco tempo dezenas de irmãos partiram para a eternidade, não sei explicar porque fui poupada, estive ao lado daqueles que contraíram a doença, ajudei como pude, mas meu povo não tinha como escapar desta assassina.
O que um dia foi o acampamento cigano em muito pouco tempo virou um cemitério, poucos de nós escaparam, perdi todos que eu amava, ela levou minha mãe, meu pai, dois dos meus três irmãos, meus tios, meus amigos e aquele que um dia seria o meu marido.
Assim como chegou ela partiu deixando um rastro de morte e desolação, nós os sobreviventes partimos deixando tudo para trás, colocamos fogo no pouco que havia restado do que um dia foi chamado de nosso lar, ao longe dava para avistar a fumaça negra que consumia o nosso acampamento.
Éramos em talvez vinte ou mais pessoas que fugiam apenas com o que pudemos carregar, água mantimentos, a roupa do corpo e algumas moedas.
Pela estrada o que se via eram apenas outras pessoas que como nós haviam conseguido escapar da morte e muitos não iriam terminar a viagem.
levavam com eles os sintomas da praga e com certeza iriam contaminar aqueles que estavam juntos na estrada fugindo do inimigo invisível.
Lívio um dos poucos homens de nosso acampamento que havia sido poupado assumiu a chefia do grupo e disse que deveríamos deixar a estrada e procurar um lugar para montarmos nosso novo acampamento.
Todos concordaram afinal estavam cansados da caminhada, a sede e a fome já faziam parte do nosso grupo e alguma coisa tinha que ser feita.
Nos afastamos da estrada e entramos em meio a um bosque em busca do local, depois de uma boa caminhada encontramos uma clareira e paramos, não dava para descansar, portanto foram distribuídas tarefas para todos.
Meu irmão Niko teve a incumbência de encontrar água, outro cigano ainda jovem de encontrar comida e os outros ficaram para montar as barracas com galhos e folhas que haviam por toda nossa volta.
Naquela noite a sorte parece que se lembrou da gente, meu irmão voltou dizendo que havia encontrado uma fonte, ainda tínhamos mantimentos que iriam durar alguns dias e uma pequena fogueira foi acesa para aquecer os alimentos e a todos nós.
Mal sabíamos que aquela pequena fogueira iria mudar a vida de muita gente, apesar de pequena parecia um farol iluminando a noite e atraindo quem passava na estrada.
E eles foram chegando, pedaços do que outrora foram famílias, algumas crianças sem os pais, homens que haviam perdido a razão de viver, todos eram atraídos por aquela pequena fogueira e nós nos desdobrávamos para atender a todos e tentar dar um pouco de conforto para aquelas pessoas.
Ciganos e gadjes juntos na desgraça, o preconceito foi esquecido, o amor à vida era maior que tudo.
Outros ciganos chegaram com suas carroças e montaram suas tendas, havíamos criado uma comunidade onde todos se respeitavam.
Em pouco tempo àquela clareira ficou pequena, arvores foram derrubadas e com a madeira construíam barracos.
Um dia chegou uma carroça de um comerciante com mantimentos e ele montou seu pequeno negócio, outros comerciantes também se instalaram por ali e a clareira foi aumentando até chegar a estrada.
No principio Lívio comandava e organizava aquela gente, mas com o passar do tempo ninguém dava atenção as suas palavras, o nosso pequeno acampamento estava virando um vilarejo, e crescia todo dia.
Agora a estrada passava no meio do local, já haviam barracos do outro lado da estrada, a mudança era muito rápida, onde antes eram barracos casas eram levantadas do dia para a noite, comerciantes das cidades vizinhas traziam mercadorias para comercializar ali e o povo cigano foi ficando distante, continuávamos no mesmo lugar, o que antes era o centro da clareira hoje era um canto esquecido.
Os ciganos que chegaram permaneceram unidos, assim nosso acampamento continuava apesar de tudo, aquelas crianças que chegaram até nós sem os pais continuavam com a gente, os outros foram se afastando e se integrando o vilarejo.
Só se lembravam do povo cigano quando alguém adoecia, mulheres em trabalho de parto eram levadas para os ciganos e acabei virando parteira, mãe das crianças órfãs, amiga daqueles que perderam tudo.
Nossa pequena fogueira era acesa todas as noites, mas já não fazia o mesmo efeito de outrora, muitas outras eram acesas pelos gadjes e o que se via era muita fumaça cobrindo o céu estrelado.
Meu sonho de um casamento feliz ficou no passado, se meu pai não mais podia me ver casando, se meu noivo estava na eternidade jurei jamais me casar e cumpri esse juramento até o fim dos meus dias.
A guerra finalmente terminou e todos comemoraram, alguns voltaram para seus paises de origem, outros ficaram por aqui, afinal era um porto seguro, a doença jamais chegou até nós mas, continuava matando em todo o mundo.
Aquela comunidade que existia estava acabando, o amor foi se distanciando, a intolerância voltou, ser cigano passou a ser sinal de raça inferior e abandonados na periferia daquele vilarejo íamos levando nossa vida.
Nossa vida foi ficando insustentável, se acontecesse um roubo no vilarejo colocavam a culpa nos ciganos, gadjes bebiam em demasia e vinham perturbar a nossa paz, ciganas eram desrespeitados em plena luz do dia, os comerciantes cobravam mais caro do meu povo, de repente nós éramos os intrusos e tudo faziam para demonstrar isso.
Então certa noite quando estávamos todos a beira da nossa fogueira Lívio disse:
- Aqueles que forem ciganos e também aqueles que hoje se consideram ciganos estão convidados, meu grupo vai partir amanhã, nosso lugar é na estrada e Santa Sara como sempre vai estar com a gente nesta jornada, portanto aqueles que quiserem preparem suas coisas vamos partir, vamos em busca daquilo que todo não cigano inveja, vamos aproveitar a nossa liberdade, acordar com o sol e dormir com as estrelas.
A resposta ao comunicado de Lívio foram gritos, palmas e todos começaram a arrumar suas coisas e no dia seguinte aquela mesma fogueira que ainda mostrava sinais de vida da noite anterior foi definitivamente apagada para renascer em outro lugar em outro acampamento.
A caravana cigana estava outra vez na estrada deixando para trás uma pequena cidade.
Sou Silvana.
A amiga das piores horas.
Sou a parteira na entrada da vida.
Sou a mãe dos esquecidos.
Sou a conselheira.
Sou o abrigo.
Mas antes de tudo sou cigana.
AUTOR: Gidelson E. da Silva
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